Exercício para uma crônica de Carnaval número 1

Tem gente que ainda não sabe, mas o carnaval do Rio mudou muito nos últimos anos. E pra melhor. Durante a década de 90, o carnaval do Rio dormiu profundamente. Existia somente no sambódromo. A festa havia migrado para as cidades vizinhas: Saquarema, Búzios, Nova Friburgo, Sana, o Carnaval comia solto e louco por aí. Eu, como bom carioca, já passei carnavais em todas essas cidades. Insanas e inesquecíveis festas. Lembro de um carnaval em Búzios em que eu e uns amigos dividíamos um quartinho apertado de uma pensão. Para economizar, compramos várias caixas de cerveja no supermercado, e descobrimos que a geladeira da pensão, onde planejávamos gelar a bebida, não estava funcionando. A solução foi beber.. tudo quente mesmo! Incrível o que não se faz com dezessete anos. Bebemos umas quarenta long-necks quentes!

Pois bem, eram tempos em que todo mundo fugia do Rio no Carnaval. Hoje é o contrário. De uns dez anos pra cá, o Rio recebe gente de todo país e os blocos de rua renasceram com força total. A prefeitura reativou o carnaval da Avenida Rio Branco, por onde passam os ultra-tradicionais Cacique de Ramos e Bafo da Onça e monta palcos com shows na Lapa e Cinelândia. Este ano, não houve show nos Arcos, mas em compensação, as dezenas de casas de show promoveram festas e pagodes. E muitos blocos pequenos surgiram nas imediações do Bairro de Fátima e Lapa.

Um dos blocos mais legais é o Boitatá, que parte às nove horas da manhã da rua do mercado, dá umas voltas pelo centro e termina na praça XV. É frequentado por universitários e belas jovens de toda cidade. A criatividade nas fantasias nos carnavais do Rio é espantosa. Impossível descrever os milhares de tipos que rondam a cidade. Preto velho, mamãe noel, peter pan, minnie, emília, melindrosa. Vi homens e mulheres fantasiados de pia de lavar, ônibus, presidiário, policial, empregadinha.

Enfim, creio que eu faria uma belíssima reportagem se tirasse muitas fotos e publicasse por aqui. Amanhã o farei.

No entanto, não sou tão carnavalesco assim. Musicalmente, acho o Carnaval um tanto enjoativo e, na verdade, passo a maior parte do tempo em casa, fazendo outras coisas. Mas se você não vai ao Carnaval, ele vem até você. Qualquer voltinha inocente pela rua, e pimba! o Carnaval te pega. No sábado, início de tarde, eu saí para dar um passeio de bicicleta e parei hipnotizado na Mem de Sá, com a quantidade de pessoas fantasiadas, dançando ao som de músicas que vinham dos bares. Era a multidão que refluía do super-bloco Cordão do Bola Preta, na Cinelândia, e vinha pra Lapa. Apareceu um trio elétrico - outro bloco, o Carioca da Gema, que empolgou a galera tocando Tim Maia e Jorge Benjor. Parei ali, tomei uns quatro ou cinco latinhas e dei risada com as fantasias esdrúxulas que passavam.

O melhor bloco de que tenho notícia é o Boi Tolo, filho bastardo do Boitatá. O nome vem dos foliões perdidos em busca do Boitatá, que até poucos anos atrás não tinha hora nem local certo, justamente para não atrair grandes multidões - como atrai agora. Daí surgiu o Boitolo. Neste domingo, encontramos o Boitolo por acaso, vindo pela Sete de Setembro, atravessando a Primeiro de Março e subindo as escadas do suntuoso Palácio Tirandes, sede da Assembléia Estadual. O som rolou primeiro nas escadas, depois subiu um pouco e rolou lá em cima. Depois a banda desceu e voltou pela Sete de Setembro, virou na Avenida Rio Branco, depois virou em outra rua e acabou sob os pórticos do histórico edifício Gustavo Capanema. Todo mundo dançando e cantando muito. A banda trazia, além da percussão básica, muitos instrumentos de sopro. Nada elétrico. Muito autêntico e divertido. Uma diversão totalmente gratuita.

E eu, como de praxe, tentava bater meu recorde pessoal de latinhas de cerveja bebidas. A certa hora, o pessoal começou a entoar entuasticamente o refrão: ÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔ / O Rio é melhor que Salvadôôôr / O Rio é melhor que Salvadôôôr / O Rio é melhor que Salvadôôôr /O Rio é melhor que Salvadôôôr /O Rio é melhor que Salvadôôôr /O Rio é melhor que Salvadôôôr. Suspeito que euforia com que as pessoas cantavam esse refrão sugere uma denúncia alegre mas enfática do carnaval elitizado e separatista de Salvador, onde as pessoas compram abadás de 400 reais para permanecerem dentro de cordões de isolamento, afora os camarotes ainda mais caros, de onde se pode assistir confortavelmente os trios elétricos. E, sobretudo, uma denúncia do empobrecimento musical do axé music, hoje um estilo absolutamente vendido, cafona e medíocre. Os foliões do Boitolo cantavam clássicos da MPB em ritmo de samba e marchinhas famosas, ressuscitando os inesquecíveis carnavais que a cidade viveu até os anos 60, quando o baixo astral da ditadura começou a prejudicar a festa.

Eu bebia agora devagar, para não vomitar. Gastei menos que 20 reais e não conseguia nem mais beber. Legítima diversão de rua, barata e democrática, como eu gosto. Como eu preciso. Depois uma turminha que encontrei nos convidou a ir ao Balanga Lafumenga, um bloco do Jardim Botânico. Pegamos um ônibus e fomos todos. Tirei uma soneca no caminho. Chegando, contudo, nos arrependemos de termos ido. Nem tudo são flores, afinal, para intelectualóides respirando arte, cinema e política, como a gente.

Aquele bloco, aquele bairro, era um ninho de playboys marombados e suas pirigetis (tenho assumido preconceito contra a zona sul carioca, foco de pitbulls enlouquecidos, prostitutas disfarçadas de moças de família, gabeiristas alienados e demais bichos escrotos), e estávamos cansados e com fome. Eu, como já contei, havia tomado mais de dez latinhas e a lombeira chegava, insidiosa e dominadora. Voltamos para o centro, onde moramos, e passamos o resto da tarde em nosso quarto-e-sala simples e aconchegante da rua do rezende. À noite, assisti um filme horroroso, intitulado Ataque dos Tubarões e fui dormir sentindo-me culpado por ter perdido meu preciso tempo com um enlatado americano tão ruim.

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